sábado, 1 de junho de 2013

No rescaldo da Revolução Liberal (3)

Banditismo em Balasar em 1841 e 1842


Nos anos de 1841 e 1842, Balasar foi repetidamente alarmada com notícias de banditismo. Se reunirmos as várias mensagens que dão informação sobre ele (as do administrador da Póvoa, as dos sucessivos regedores e ainda as do administrador do Porto) elas totalizam quase duas dezenas.


Assaltos aos correios

A primeira dessas notícias tem a ver com assaltos aos correios, aos homens que transportavam a correspondência.
Com data de 2 de Março de 1841, veio uma circular do administrador geral do Porto, remetida aos regedores dos Juízos de Paz de Rates e de Balasar (Rio Mau, Rates, Balasar, Parada, Outeiro Maior e Santagões), que dizia assim[1]:
Tendo-se ultimamente amiudado os assaltos aos correios que transitam deste para outros Distritos Administrativos e devendo ocorrer-se imediatamente para que cesse tão criminosos procedimentos, manda Sua Ex.cia o Sr. Administrador Geral lembrar a V. Senhoria as repetidas recomendações feitas sobre este objecto, determinando que V. Senhoria vele e faça velar muito escrupulosamente pelos Regedores e Cabos da Polícia para que se cumpram as providências que sobre isto mesmo têm sido recomendadas, fazendo escoltas aos mesmos correios nos lugares em que mais frequentemente têm sido cometidos os assaltos e naqueles que presumirem mais aptos para isso, ou seja pela sua solidão ou pela sua disposição.
Não era coisa específica de Balasar, mas obrigava o regedor e os cabos da polícia a actuar: o administrador, que era António José dos Santos, foi claro a tal respeito, dirigindo-se aos regedores:
V. Senhorias, inteiradas desta disposição, têm de responder na falta de negligência por qualquer acontecimento que possa ter lugar aos ditos correios.
Mas destes assaltos, altamente perturbadores mesmo para particulares e que deviam pôr em causa o regular funcionamento dos serviços administrativos, não se volta a falar.


Banditismo em Balasar e arredores

No final de Agosto, o administrador António José dos Santos cedeu o lugar a Francisco Leite de Morais. Este, que já exercera o cargo anos antes, parece que apreciava sensações fortes. Por isso farejava circunstâncias eventualmente problemáticas que lhe dessem protagonismo. Mas não se saiu muito bem.
Logo em Setembro, teve uma rara oportunidade de mostrar como era duro.
O documento que se segue é a resposta que enviou a uma missiva que lhe viera do “Ilustríssimo Senhor José Joaquim de Santana, Juiz de Direito da Comarca de Vila do Conde”:
Tenho a honra de acusar recebido o ofício de V. Senhoria, datado de 14 do corrente, dando-me parte de terem sido assaltadas várias pessoas, já em maior, já em menor número, isto ao norte do rio Ave.
Tenho a levar ao conhecimento de V. Senhoria que presentemente nesta Administração não há participação alguma, mas neste mesmo momento oficio aos Regedores destes sítios me informem circunstanciadamente a tal respeito, o que logo levarei à presença de V. Senhoria.
No mesmo dia, escreve, de facto, escandalizado, aos Regedores de S. Cristóvão, Rates e Balasar:
Constando nesta Administração, por ofício do Meritíssimo Juiz de Direito da Comarca, de 14 do corrente, terem sido assaltadas várias pessoas por quadrilhas de ladrões nos subúrbios dessa freguesia, faz-se notável que V. Senhoria, até ao presente, não tenha dado parte a esta Administração de tão funestos acontecimentos, o que imediatamente me participará circunstanciadamente para serem dadas as providências que o negócio tão sério como este exige.
Se calhar o Juiz de Direito da Comarca de Vila do Conde não tinha falado em quadrilhas de ladrões, mas fala ele.
No dia 18 já tem novidades para o Juiz de Direito da Comarca de Vila do Conde:
Em virtude do ofício de V. Senhoria, datado de 14 do corrente, tendente aos acontecimentos praticados pelos ladrões nas estradas que ficam ao norte do rio Ave, nada mais tenho podido obter até ao presente dos Regedores das freguesias destes sítios senão que, há um mês pouco mais ou menos, fora dado um tiro no Escrivão do Juiz de Paz da freguesia de Arcos e na mesma ocasião roubado um lavrador que na companhia deste vinha, por três indivíduos desconhecidos, isto no lugar do Feiticeiro, e que, dias depois, no lugar do Cubo, fora assaltado um almocreve, tirando-lhe duas pescadas duma carga e uns sapatos, por dois indivíduos também desconhecidos.
Estão dadas ordens aos Regedores para rondarem e qualquer acontecimento que haja V. Senhoria será sabedor dele.
Afinal, pouco havia a contar: não havia quadrilhas de ladrões nem coisa que se parecesse. Mas isto bastou para ele escrever logo aos regedores de Balasar, Rio Mau, Rates, Parada, Santagões e Outeiro Maior:
Constando nesta Administração que na estrada que desta vila se dirige para a cidade de Braga têm sido assaltados por quadrilhas de ladrões, não só de dia como também de noite, diferentes pessoas que pelas mesmas têm transitado, devem V. Senhorias fazer rondas, não só de dia mas de noite, à referida estrada pelos Cabos das suas respectivas freguesias, como também fazendo apenar homens para coadjuvar estes, muito principalmente no lugar do Feiticeiro e Cubo – nesta mesma data se oficia aos Regedores de S. Cristóvão e Rates para o mesmo fim – dando-me parte imediatamente de qualquer acontecimento que haja, fazendo capturar qualquer indivíduo desconhecido, remetendo-o imediatamente a esta Administração, ficando V. Senhorias na certeza de que ficarão responsáveis por qualquer omissão a tal respeito.
Era preciso encontrar as quadrilhas de ladrões… nem que tivesse de incomodar muita gente!
Mencionaram-se os lugares do Feiticeiro e do Cubo. O feiticeiro era, ou tinha sido, o vendeiro ou estalajadeiro da hospedaria a que o P.e Leopoldino chama Estalagem do Torto. Ficando no extremo das freguesias de Balasar e Macieira, não é certo a qual delas pertencia.
O Cubo era um moinho que existiu junto ao ribeiro que passa a nascente das Fontainhas, mas era também o nome da ponte que aí havia.
No dia 20 do mesmo mês de Setembro, o regedor de Balasar, Luís João Ferreira, acrescenta qualquer coisa, mas ainda não fala em quadrilhas de ladrões…
Ilustríssimo Sr. Administrador do Concelho da Póvoa de Varzim
Em virtude do ofício que acabo de receber de V. Senhoria, em consequência dos roubos, eu, do primeiro roubo que aconteceu, dei um tiro em Augusto Fernandes, da freguesia de Arcos. Eu, deste acontecimento, dei parte para a sua administração por escrita e até a entreguei com minha mão; e dos outros roubos que têm acontecido agora de pouco ainda não dei parte porque foram feitos entre os limites de Macieira e Rates e me consta o ser verdade o ter roubado por várias vezes, mas não se lhe pode fazer nada, só se for a matar, porque andam destemidos. Consta que os roubos têm sido feitos desde a Serra de Rates até ao Muinho do Cubo. É a notícia que tenho e o que posso informar a V. Senhoria.
Luís João Ferreira também gostava de acção, de tiros…
O administrador do concelho tinha razões para estar preocupado, mas não devia exagerar. Em 23, responde assim ao Administrador do Concelho de Barcelos que também já se alarmara:
Acuso a recepção do ofício de V. Senhoria nº 413, datado de 18 do corrente, no qual me participa os acontecimentos dos salteadores praticados com os viajantes já de dia já de noite, desde o sítio do Feiticeiro até Casal de Pedro, como também desde a freguesia de Negreiros até à serra do Casal Novo.
Tenho a honra de levar ao conhecimento de V. Senhoria que já em 15 do corrente foram dadas ordens aos Regedores das freguesias de S. Cristóvão de Rio Mau, Rates, Balasar, Outeiro Maior, Parada e Santagões para serem capturados todos e quaisquer indivíduos que fossem encontrados que se julguem suspeitos não só nos referidos sítios mas também em outros quaisquer deste Concelho que estejam a cargo dos referidos Regedores e então V. Senhoria poderá ordenar que os seus Regedores se entendam com estes para que termine de uma vez semelhante praga.
Francisco Leite de Morais calou a expressão favorita das quadrilhas de ladrões, mas pôde pintar um cenário de real perigo: o banditismo estendia-se por três concelhos: além de Balasar, Casal de Pedro (na Junqueira, Vila do Conde) e Negreiros (Barcelos). Casal Novo devia ser Rates.
Mas nem com a ajuda do administrador de Barcelos foi possível apanhar qualquer dos salteadores. Ao menos, de tal não há notícia.


Assalto na Gandra

Em 18 de Outubro de 1841, o regedor José António Furtado escreveu assim ao administrador:
Dou parte a V. Senhoria de que nesta freguesia, nesta noite passada, das onze horas para a meia-noite, aconteceu um assalto de ladrões à força em casa de Miguel João Furtado, na Gandra, em que houve muito aqui d’El-Rei e rebate do sino e alguns tiros, porém não morreu ninguém nem puderam efectuar o roubo.
É a parte que dou a V. Senhoria.
Não sabemos se Francisco Leite de Morais deu importância a este roubo, mas um pouco mais à frente, no princípio de Novembro, reuniu nova força de regedores e cabos da polícia para actuar em Balasar. Vieram homens do Outeiro Maior e de Parada. Pode-se por isso presumir que fosse para actuar na Gandra.

 uma história oral de violência na Gandra que à partida nos parece que viria de um tempo próximo do que se está a considerar, mas da qual não encontrámos qualquer documento. Aqui fica tal qual no la transmitiram:

A Casa de lavoura da Gandra, da família Furtado, devia dinheiro à casa Santos, de Gresufes. Era então uso pagar os juros na data exacta acordada entre as duas partes.
Um ano, o Santos, de má-fé, fez saber ao Furtado que no dia do pagamento tinha uma saída urgente, pelo que receberia no dia seguinte os vencidos.
O Furtado fiou-se na palavra do Santos, mas este, como o prazo tinha sido ultrapassado, apareceu-lhe com os oficiais d a Justiça e, pela chamada Lei do Rato, tomou-lhe várias parcelas de terreno.
Bom rato saiu o Santos ao Furtado!
Por este motivo, foi a casa do Furtado desmembrada e o Santos construiu outra nos terrenos que lhe tomou. A partir daí nunca mais houve harmonia entre as duas famílias.
Uma vez andava o Santos a abrir regos para uma sementeira de trigo no Campo das Poças, que tinha tomado ao vizinho, quando um tiro saído de trás dum valado o matou fulminantemente.
O Furtado andava a essa hora a podar uns carvalhos num prédio contíguo e as pessoas que trabalhavam na sementeira do Santos garantiram a sua inocência.
Embora não fosse o autor do tiro, suspeitou-se que o Furtado teria contactado o pistoleiro para se vingar do roubo de que tinha sido vítima.

Noutra versão, o pistoleiro fora pago por um emigrante do Brasil.


Nova acção inter-concelhia

Em 30 de Novembro, uma mensagem do administrador do Porto veio recolocar na ordem do dia a intervenção inter-concelhia no ataque às quadrilhas:
Consta nesta Repartição que nas extremidades desse Concelho, do de Vila do Conde, Vila Nova de Famalicão e Barcelos tem aparecido ultimamente uma quadrilha de salteadores sem que tenha sido possível capturá-los em razão da facilidade que têm de passar de um para outro Distrito. Recomendo a V. Senhoria que de acordo com os Administradores dos ditos concelhos, para o que estão competentemente prevenidos, empregue todos os meios possíveis para a completa aniquilação de tais malvados.
Em 11 de Dezembro, o administrador da Póvoa escreve ao colega de Vila Nova de Famalicão, deixando de lado os de Barcelos e de Vila do Conde:
Tendo recebido a confidencial de S. Ex.cia o Senhor Administrador Geral do Distrito do Porto, com data de 30 do passado, o qual me participa estar V. Senhoria prevenido para me coadjuvar com todas as forças que lhe são possíveis a fim de serem capturados os salteadores que enfestam os subúrbios deste Concelho e como tenciono dar uma saltada, no dia 16 do corrente, a qual é dirigida pelo Regedor da freguesia de Balasar e para bem do serviço N. e R. rogo a V. Senhoria queira pôr no sítio da Carvalhosa, às 8 horas da manhã do referido dia 16, todas as forças que lhe é possível à disposição do mencionado Regedor.
Também da acção anunciada não consta que tivesse resultado o que quer que fosse.
O bravo administrador da Póvoa devia pôr a sua fogosidade e imaginação ao serviço de outras causas, esta só lhe trazia descrédito.


Ataque à residência paroquial

Em 18 de Janeiro de 1842, o regedor de Balasar comunicou à autoridade poveira um facto grave:
Participo a V. Senhoria que no dia 16 do corrente, pelas onze horas da noite, foi acometida a residência do nosso Reitor por um bando de salteadores assassinos, quebrando-lhe as vidraças de uma janela com pedras e depois disparando-lhe um tiro na janela do quarto onde dormia, passando-lhe três balas a dita janela, o que comunico a V. senhoria para dar as providências que tais factos exigem.
O pároco, o P.e Manuel José Gonçalves da Silva, que depois dum homizio de sete anos retomara no ano anterior o seu lugar na paróquia, foi alvo de um acto ameaçador: um “bando de salteadores assassinos” é quase uma quadrilha de ladrões.
Que irá fazer Francisco Leite de Morais? Juntar mais uma vez regedores e cabos da polícia?
Não, em 20 de Janeiro informou do acontecido o Delegado do Procurador Régio do Julgado da Póvoa de Varzim:
Incluso achará V. Senhoria as cópias dos ofícios que recebi do Regedor da freguesia de Balasar e do Pároco da mesma participando os desastrosos acontecimentos na casa deste praticados, rogando eu a V. Senhoria se sirva promover o processo contra este atentado tão ilegal a fim de ver se se podem descobrir os perpetradores do mesmo e serem estes punidos rigorosamente.
Mas não seria a ele, administrador, que cabia actuar antes de qualquer outra autoridade? A experiência tinha-lhe ensinado alguma scoisa.
Mas Balasar ainda lhe ia dar mais dores de cabeça.


Luís Saramago, o desertor

Muito do que está dito atrás pode ter relação bem próxima com desertores, com mancebos que fugiam na hora de entrar para o serviço militar. Podiam mudar de freguesia e de concelho, podiam fugir para o monte ou até embarcar para o Brasil. Era fácil aos que ficassem por cá acabarem em salteadores.
De resto, a lei creio era muito injusta, chamando para a tropa quase exclusivamente os filhos dos pobres.
Em 18 de Agosto de 1842, o regedor de Balasar Joaquim Domingos Leitão (genro de António José dos Santos) levou esta informação ao conhecimento do administrador:
Dou parte a V. Senhoria que Luís, da Gandra, o desertor, se passou para a Maia, para a freguesia de S. Estêvão, pois lá tem dois manos casados e por isso seria bom que V. Senhoria fizesse esta participação ao Sr. Administrador de Vila do Conde, para ele dar as providências a que o dito desertor seja reconduzido à prisão.
Em 29 de Agosto, o administrador da Póvoa passou a palavra ao colega vila-condense:
Tendo agora a notícia de que o desertor de Balasar Luís, por apelido o Saramago, que tanto trabalho tem dado, tendo esperado nas estradas deste concelho, achava-se ontem próximo, à noite, na Estalagem do Galego, do Casal de Pedro, e também me consta que frequenta a de Joaquim Pito e outras mais tabernas daquele lugar, rogava a V. Senhoria se dignasse mandar ordem imediatamente ao Regedor daquela freguesia a fim de ver se o captura, ao que V. Senhoria fará um serviço muito grande aos povos do seu Concelho.
Os sinais são os seguintes: altura regular, cor pálida, cabelos castanhos, barba cerrada com passa-perolhos (?).
A informação de Joaquim Domingos Leitão não bate certa com a de Francisco Leite de Morais. De qualquer modo, para dar tanto que falar, Luís Saramago pode ter sido o principal salteador mesmo dos sítios do Feiticeiro e do Cubo.

Custódio José da Costa ofereceu o seu retrato como ex-voto à Santa Cruz em agradecimento por esta lhe ter concedido que as obras da capela decorressem “sem perigos nem assaltos de ladrões”.
Noutra ocasião escreveu que “administrou aquela capela, morada daquela Santa Cruz, cinco anos e sete meses, em cujo tempo arrecadou as esmo­las que não podia ter em sua casa com susto de que os ladrões o roubassem, vendo-se em muitíssimas vezes na precisão de não dormir na sua própria casa a fim de salvar o resultado das muitas esmolas”.
Este cinco anos e sete meses devem corresponder à segunda metade de 1832 e depois até ao fim de 1837.
O banditismo em Balasar, e noutras freguesias com certeza, já vinha de longe. Mas o que aqui contamos terá sido um pouco especial e está bastante documentado.




[1] Encontrámos pela primeira vez as duas mensagens sobre os assaltos aos correios no livro de actas da junta de paróquia do Outeiro Maior; posteriormente, tivemos acesso aos originais delas no arquivo da Póvoa. 

Sem comentários:

Enviar um comentário